Denise Oliveira, membro da comunidade CVX Nossa Senhora de Nazaré da Regional Rio, partilha conosco um texto fruto de seu retiro, que reproduzimos abaixo. Agradecemos à Denise pela generosidade da partilha e à Deus pela experiência que ela realizou.
Uma história de dois apóstolos nas vésperas de uma Páscoa
Eram dois, entre doze, os doze que persistiam no centro de um bando flutuante de seguidores do Mestre.
Um, experiente, consciente do seu valor, estava convicto que o Mestre precisava dele. Afinal, os demais não passavam, em sua maioria, de um bando de simplórios. Certo, o Mestre precisava deles também, eles tinham apoio popular. Outros de maior vulto não queriam se comprometer, e apareciam eventualmente entre os seguidores mas nunca ficavam. Só ele, entre os fiéis, é quem entendia verdadeiramente o que estava ocorrendo. Não ia demorar muito. As forças opostas estavam alertas agora, e estavam atrás deles. Mais dia, menos dia, o Mestre iria mostrar a que veio. Suas falas eram muito enigmáticas para que o apóstolo conseguisse decifrar exatamente o que iria ocorrer, mas ele conhecia as Escrituras, e sabia algumas coisas. O Messias ia expulsar os opressores estrangeiros, denunciar e trocar os sacerdotes infiéis, destronar o rei fajuto. Instaurar, finalmente, o Reinado de Deus sobre seu povo escolhido, com o Messias no trono, e ele, claro, à sua direita. Quem mais?
Outro, mais humilde, tinha muito coração. Era sua maior virtude e sua maior fraqueza. Ele amava o Mestre, não suportava vê-lo sendo maldizido pelas costas, e já tinha entrado em mais de uma briga. Mas o Mestre já lhe tinha dito que parasse com aquilo. Que fazer? Quando o sangue subia à sua cabeça… O Mestre tinha-o apelidado de Rocha, mas firme ele não era, não muito. A cada hora ia de uma maneira, mas era seu jeito. E sabia, tinha certeza, que o Mestre o amava assim mesmo como era. Ah, que ele disputava o lugar de preferido com os filhos do trovão. Ciúmes… Ele era mais velho, cabeça dura e meio simplório; às vezes os outros o enrolavam mas ele não largava do lado do Mestre. Ah, o Mestre precisava dele. Os demais, quem sabia se realmente ficariam firmes ao lado do Mestre quando viessem os tempos difíceis. Pois eles viriam, isso pelo menos ele conseguia entender de tudo o que o Mestre dizia. Profetas, quem entende o que eles falam? Alguns dos outros faziam que entendiam, mas ele tinha certeza que estavam era se achando, fazendo pose.
Os dois, quase no mesmo momento, se sentiram publicamente humilhados pelo Mestre.
Primeiro, o apóstolo firme mas não muito, havia ficado espantado com o discurso derrotista do Mestre. E logo quando ele tinha – finalmente!!! – assumido que era o Messias, pelo menos para o pequeno grupo que estava com ele no momento. E tinha sido – ah que orgulho! – ele mesmo, Rocha, que tinha tido a coragem de dizer em voz alta o que todos achavam, esperavam, torciam. E o Mestre o tinha reconhecido diante de todos, ah que momento! Para logo depois, quando ele o chamou à parte, que não convinha ficar falando de calamidades e perseguições, pois a moral já estava meio prejudicada com as corridas que tinham sofrido em algumas cidades. Claro que Deus ia socorrer ao seu Messias! Era só ficarem firmes. Discurso derrotista não ajudava. Ele sabia que quase todos, até aquele empostado do portador da bolsa, concordavam com ele. E corajoso, e animado e encorajado pelo reconhecimento do Mestre, lá foi ele botar a mão no fogo de novo, e ai que saiu queimado… que bronca! Se ele não soubesse o quanto o Mestre o amava, e como era seu jeito de exagerar nas palavras, ele não teria aguentado não. Mas de cabeça baixa, escutou e ficou quietinho, no canto, no resto da viagem. Não demorou, algum tempo depois o Mestre o chamou mais perto e contou histórias, e ele sentiu que a bronca já tinha passado e o coração ficou mais leve. Mas que doeu, ah isso doeu…
Depois foi a vez do outro. Como sempre, responsável pelas finanças do grupo, ficava sempre, senão junto, bem perto do Mestre, para que este pudesse pedir-lhe as providências que fossem necessárias. Desta vez também. Chegados nas vizinhanças de Jerusalém, o apóstolo estava especialmente satisfeito. Finalmente o Mestre tinha parado de se esquivar de confrontações, e tinha vindo direto para o ninho de víboras que era Jerusalém. Eles iam passar o dia seguinte no Templo, certamente armando confusão. Agora a revolução era inevitável, o Senhor dos Exércitos iria se manifestar com toda a sua força. Ainda era momento de festa, Páscoa e dia dos pães ázimos, ótima oportunidade, Jerusalém estava cheia de gente, e o povaréu ia com certeza se levantar às palavras do Mestre. Ele tinha que dar as mãos à palmatória, o Mestre sabia falar. Em todas as suas caminhadas, nunca tinha encontrado ninguém que conseguisse sair de uma discussão com o Mestre que não fosse derrotado. Ele mesmo já tinha desistido fazia tempo. Não era esse seu ponto forte, de qualquer modo. Não era para isso que ele estava ali. O Mestre apreciava sua contribuição, seu trabalho agora era o mais importante, depois do Mestre claro, e sem dúvida com a vinda do Reino todas as coisas ficariam claras. Por enquanto… Ei, o que aquela mulher fazia aqui? Ele a conhecia, bem, era uma daquelas que o Mestre permitia que se misturassem com os discípulos. Não ficava bem, aquilo. Isso não era lugar para mulheres. Seu papel era atrás, ajudando na comida, na arrumação, servindo. Não ali na frente. Mas o Mestre tinha ideias estranhas. Bom, que fazer? Ai, o que ela está fazendo? Esse cheiro, reconheço! Ai que desperdício! Ela deve ter pego reservas de dinheiro sabe-se lá de onde! Vai ver que as coisas que se falavam dela por trás das costas do Mestre eram verdade, e ela certamente não merecia estar ali. Levantou-se o apóstolo e, irritado, começou a repreendê-la, antes tivesse ela pego o dinheiro e entregue para ele colocar na bolsa! Que se ele tivesse aquelas trezentas moedas de prata, que o perfume certamente tinha custado, ah ele teria uso para elas! Preparando o futuro, nada que o Mestre precisasse ficar sabendo dos detalhes, porque dos detalhes era ele apóstolo que cuidava. E ainda falava, quando o Mestre o interrompeu e repreendeu publicamente, apoiando aquela mulher! Ele ficou vermelho, roxo, azul, saindo fumaça, sentou-se, sem conseguir sequer prestar atenção nas palavras ditas pelo Mestre. Ah que ele iria se arrepender… Com os outros era diferente, mas ele! Lutou para recuperar o equilíbrio. O Mestre olhava para ele esquisito. Ele fez uma careta que quase parecia um sorriso e virou pro outro lado. Não, ele não queria brigar com o Mestre, mas puxa, doeu… Na frente dos outros!
Os dois, como quase todos os demais, desapontaram o Mestre.
O emproado foi o primeiro. Sem dar o braço a torcer, ainda se roía de raiva. Ele queria mostrar pro Mestre a sua importância, e teve uma ideia brilhante. Já que estavam ali para precipitar a confusão, ele ia armar para que tudo acontecesse da maneira mais dramática possível. Como? Bem na Páscoa! Isso! Os víboras estavam preocupadíssimos com o Mestre e a confusão que temiam que ele fosse armar. Mas eles não conheciam o Mestre, não de verdade. Então, ele só precisava colocá-los um contra o outro, que o Mestre ganhava fácil, e o apoio da população garantiria tudo de sobra. E foi lá, fez-se de traidor (sem admitir nem a si próprio o quanto a vingançazinha era gostosa), e armou para esperar o melhor momento. Todos os outros estavam apavorados. Gente sem fé. Claro que tudo ia dar certo. Rebelião em Jerusalém, aquelas acomodadas legiões romanas iam ver o que era bom numa briga na cidade. E se não fosse suficiente, o Deus que havia derrotado os exércitos de Faraó daria um jeito. O Mestre já tinha mostrado que tinha poder. E, no cantinho mais profundo de sua mente ele pensava, se desse tudo errado, pelo menos podia passar pro lado vencedor… quando Deus mostrasse de que lado estava de verdade.
Todos os outros estavam alheios à traição, mas o Mestre parecia saber de algo. Olhava estranho para o emproado, e este replicava com um sorriso amarelo. Claro que o Mestre sabia. E se não o tinha repreendido, é porque sabia que era necessário. Mas também ainda não tinha explicado de verdade, esclarecido as coisas. E ficava naquele chove-não-molha em que a revolução ainda parecia atrás do horizonte e todo mundo com medo. Irritante mesmo… O emproado decidiu-se, ele estava mesmo certo.
E aconteceu o jantar, em que o Mestre celebrou a Páscoa, antecipadamente, com todos os seus seguidores, não só o núcleo dos doze, mas também aqueles outros poucos que tinham sobrado com eles, caminhado até Jerusalém. Páscoa estranha, com cerimônias estranhas, mas o Mestre era assim mesmo. O Mestre sabia o que ia acontecer, mas os seguidores não, só sabiam que “algo” iria acontecer, e todos, quase todos, estavam com medo. E o emproado saiu, como era seu costume, para “cuidar das coisas”, e foi direto armar a armadilha. Para quem, ele não tinha mais certeza. Não tinha outro jeito, tinha que ser aquela noite, senão tudo o que tinha feito, teria sido perdido… E o Mestre foi preso. Para surpresa do emproado, ele não resistiu, nem fez discurso em sua defesa. Foi mansamente, ao contrário das demais confrontações em que sempre conseguiu desarmar os agressores. Desta vez não… Desconcertado, o traidor foi junto, curioso para ver o que ia acontecer. Poucos outros foram também, escondidos. O resto sumiu na noite.
Lá foi o emproado, e cada vez mais preocupado, via o Mestre não se defender das acusações ridículas. Não poderiam ser mais ridículas se tivessem armado um teatro de propósito. Incompetentes, não conseguiam sequer afinar o discurso das testemunhas! Piada. Mas o Mestre, ao invés de se aproveitar da confusão, ficava quieto, ou só abria a boca para se enrolar mais ainda. O traidor pesou ser possível que tivessem dado alguma marretada na cabeça dele, ele só podia estar tonto… mas cadê o Senhor dos Exércitos que não age? Não é ele o Messias? Isso não pode acontecer, não está acontecendo… Canta uma vez o galo, e preocupado, o traidor olha em volta, cruzando o olhar com o pescador. Miserável aquele, escondido no meio dos criados! Mas não importa. O olhar dele tinha mais medo que raiva, ele não ia se vingar ali. O olhar do traidor se cruza rapidamente com o do Mestre, sem querer. O emproado havia evitado encarar o Mestre desde aquele último olhar na mesa. Ai, que olhar triste. O emproado desmoronou. Não está acontecendo! Ele não vai se defender. Não entendia mais nada. E a dor no coração. Ele se achava forte, mas afinal de contas era seu amigo. Haviam caminhado juntos por quanto tempo? Tudo acabou. Não quis de jeito nenhum olhar de novo nos olhos do Mestre. Temia o que encontraria lá. Acusação? Desapontamento? Não sabia o que era pior. No cantinho mais escuro da alma ele sabia sim. Perdão. Que ele não podia aceitar. Pois todo o seu ser desmoronou. Desarvorado, saiu, mal notado pelos víboras preocupados com sua presa, e nem conseguia pensar direito. Sua vida acabou. Quem ele era? Ele havia errado. Ele. Havia. Errado. Inadmissível…
O galo cantou duas vezes, e o olhar do Mestre cruzou, agora, com o do firme-não-firme-pescador. Acovardado. Firme nada. Coração doído, morrendo sem saber o que iam fazer com seu amigo, não queria saber de revolução. A coisa era séria, e às vezes ele, lá no fundo, achava que o Mestre não entendia as coisas como todo mundo. Talvez o Mestre precisasse dele do seu lado. E fora junto. Mas, absorto com os procedimentos, tinha se assustado ao ser reconhecido, e acovardou-se e negou que o conhecesse. Nem racionalizou que se estivesse preso também não seria de muita ajuda. Não havia espaço para racionalizações na sua cabeça, tinha só a imagem do amigo preso, e desespero. No desespero, perdido, ele não sabia o que fazer, e negou de novo, e negou mais uma vez, e o galo cantou. E o Mestre o olhou. E ele caiu em si. O Mestre tinha previsto aquilo. Ele, seu grande amigo, o traiu. Fugiu correndo, e chorou amargamente.
A diferença entre os dois? Um ficou preso no erro cometido, e não conseguiu ver o que estava no olhar que o encontrou. O outro, apesar da culpa e da dor, e do medo, ainda estava mais preocupado com o amigo preso. Um se matou. O outro se escondeu, até que era tarde demais. Houve outros, que ficaram junto. As mulheres, para começar, que os judeus tendiam a ignorar, e neste momento isso era uma vantagem. E um jovem, jovem demais, e bem relacionado demais, e apaixonado demais, para levar a sério o risco. E o Mestre morreu, abandonado por seus amigos, quase todos, apenas na companhia de uns poucos que não arredaram pé, loucos de amor e dor…