Partilha de Caio Luiz Stonoga, o “Calu”
Um colega, em uma das partilhas que tivemos ao longo da experiência, comentou que, para ele, o ano só começaria depois que fizesse a jornada. Acredito que a fala dele resumiu muito bem o que vivemos durante esses oito dias em que estivemos em contato muito mais próximo com a espiritualidade inaciana.
A primeira semana que passei em Fortaleza foi uma oportunidade muito boa para conhecer novos lugares, pessoas e a cultura da cidade. Nunca tinha ido para o Nordeste, então aproveitei para passar uma semana conhecendo o melhor que a cidade tinha a oferecer. Além do calor de trinta e poucos graus durante o dia e a noite (a sensação térmica não me deixa mentir), tive um companheiro inseparável nesses dias: o sorvete de tapioca, uma delícia. Todos os dias, eu e meu potinho de sorvete caminhávamos pelo centro da cidade frequentando museus, passeando pela beira mar e passando muito, muito protetor solar, mas no final valeu a pena. A cidade é linda demais, e o pessoal do Centro Magis foi muito acolhedor antes, durante e depois da jornada.
De Curitiba viemos eu e Mari, o que me deixou um pouco receoso, porque dar o primeiro passo para conhecer novas pessoas e fazer novos amigos é sempre um desafio. E o que impediu essas amizades de se consolidarem tão cedo foi que nossa primeiríssima experiência na jornada inaciana foram logo os exercícios espirituais. Dois dias em silêncio com tanta gente nova por perto foi um teste, mas em conjunto conseguimos vivenciar logo no começo uma experiência muito bonita, em que refletimos a respeito do amor de Deus por nós em nosso constante processo de criação e, a partir desse amor, percebê-lo em tudo que nos rodeia.
Eu com minha conterrânea Mari.
Os exercícios foram seguidos de um dia dedicado a dinâmicas para desenvolver o autoconhecimento, de uma maneira totalmente inaciana: com dança, música, desenhos, escritos e meditações. Dançamos sozinhos, trocando pares, em comunidade e (algo que gostei muito) em duplas, com cada um segurando, em um dos indicadores, a ponta de um palito de algodão doce, para que pudéssemos trabalhar a confiança no outro. Logo após, participamos de outra dinâmica, que exigia que nos olhássemos, quase sem piscar e quase como um jogo do sério, por algo como um minuto e pouco. Foi constrangedor, não conseguia parar de rir. Meu amigo Levy, de Russas/CE, pediu para que eu tirasse meus óculos, para que ele pudesse ver melhor meus olhos. Foi assim que não consegui enxergá-lo nessa parte da dinâmica. No mais, tudo foi bem. Conseguimos nos reconhecer e ver de perto os detalhes do rosto de cada um, percebendo nossas individualidades e semelhanças.
Na segunda feira, fizemos nossa experiência de voluntariado na Associação Rosa Virgínia, que trabalhava com reciclagem de materiais vindos de parte do bairro Aldeota, um dos bairros “nobres” de Fortaleza. A associação tinha sede no bairro do Mondubim, onde permanecemos na segunda e terça feira.
Durante o dia, participamos da rotina dos trabalhadores da Associação Rosa Virgínia, conduzida por Dona Musa, que nos explicou que a profissão de catador de materiais ainda carecia de muita regulamentação, que os auxílios fornecidos pelo governo e pelo comércio dos materiais reciclados mal sustentavam o local e os catadores, e que ainda aguardava um posicionamento do poder público estadual a respeito do projeto Bolsa Catador, que envolvia um subsídio de cerca de 200 reais destinado a auxiliar no sustento de associações como a Rosa Virgínia. Ainda, Dona Musa nos familiarizou com o processo de trabalho do local, que deveria operar das 8h até as 17h de segunda a sábado, e que envolvia a separação correta de materiais, como papelão, plástico e PET, para que fossem prensados em blocos de cerca de 50kg, que seriam vendidos a cerca de dois reais o bloco.
Lá fomos eu e meu grupo de amigos cuidar da separação do PET. Não tinha segredo: devíamos separar o material por cor: branco, verde e azul, para depois prensá-los e deixá-los separados para venda. Cuidamos disso das nove da manhã até as cinco, com quatro pessoas cuidando da separação e uma ou duas na prensa dos materiais. Encontramos de tudo: garrafas de água ainda cheias, garrafas de coca com um restinho de coca, garrafas de guaraná com areia dentro, garrafas de suco com suco e areia dentro, e por aí vai. No final, conseguimos separar uns vinte sacos de lixo cheios de garrafas PET, o que descobrimos ser aproximadamente o montante de garrafas que uma pessoa que trabalhava na associação separava por dia. Nós estávamos em cinco, seis pessoas.
Nosso grupinho ajudando na reciclagem de garrafas PET. Da Esquerda para a direita: Levy, Carlos, Aline, eu mesmo, Ingridy e Alef.
Essa foi uma das experiências de voluntariado que menos me deixou com a sensação de dever cumprido. Acredito que funcionou muito mais para abrir meus olhos para o tamanho dos meus privilégios. Conversava com minha amiga Amária um pouco antes de encerrarmos nosso trabalho por lá e comentei com ela que eu não sabia que estava tão “dependente” do meu celular, que meu tênis tinha furado, e que minha coluna estava toda torta por causa desse dia de trabalho. Nós dois estávamos na porta de entrada da associação, observando pessoas, na maioria mulheres acima dos 50 anos, que provavelmente nunca tiveram um celular, ou que trocaram poucas vezes de tênis na vida, e que tem suas colunas debilitadas diariamente por coletar e separar materiais para prensá-los e vendê-los a preços baixíssimos. Pessoas que entram em contato diário com uma série de enfermidades e que, mesmo contraindo-as, continuam trabalhando. E foi aí que minha voz da consciência me fez parar para perceber o quanto sou privilegiado por levar a vidinha que eu levo. Muito fácil para mim reclamar de um professor na minha faculdade particular, ou poder escolher entre sabe-se lá quantos livros que tenho em meu quarto, ou se eu fico mais um mês na academia, e a lista é grande. Fato é que a rotina de segunda a sábado dessas pessoas é essa: separar os materiais, prensar, vender, repetir. Fico feliz por termos ajudado durante esse dia, mas logo que saímos já entraram alguns caminhões, com pilhas e pilhas de lixo de parte de um bairro nobre da cidade, lixo esse que foi produzido durante a segunda feira, enquanto separávamos os materiais. A associação, que opera em uma parte pequena da cidade, com uma parcela pequena da população, já causou esse impacto por mostrar que tão pouca gente produz tanto lixo. Saí de lá pensando no tamanho do lixo produzido diariamente em Fortaleza, e como não estaríamos lá para ajudar os catadores no dia seguinte.
Depois do voluntariado, fomos até a Igreja de São Roque, ainda no Mondubim, e conhecemos o grupo de jovens Mais de Mim, que seguem também a espiritualidade inaciana. Depois de um momento de apresentação, conversamos entre a gente e pudemos nos integrar melhor, já que passaríamos a terça feira com uma parte deles. Dormimos na igreja mesmo, em alguns colchonetes entregues pelo Centro Magis. Talvez a situação não tenha sido a mais confortável, mas eu mal percebi. Improvisei um travesseiro com uma toalha seca que trouxe e umas roupas que tinha na mochila, deitei a cabeça nele e capotei.
No dia seguinte, acordei com um calombo na nuca. Senti que as quase oito horas de sono foram um intervalo de 15 minutos, mas estávamos prontos para outra. Depois de nosso café da manhã, fomos até uma praça, para brincar com as crianças que frequentavam a colônia de férias da Dona Silvânia, que conduz essa atividade há alguns anos no Mondubim. Nossa dinâmica de apresentação foi bem tranquila, cantamos e dançamos com as crianças por um bom tempo (alguns mais descoordenadamente que outros, mas Deus dá a todos uma estrela). Minha amiga Ariane chamou para si o posto de animadora oficial e fez um monte de brincadeiras com as crianças, que se divertiram muito em um jogo de adivinhar o nome da fruta que o time inimigo tinha pensado. Não sabia que existia tanta fruta.
Dona Silvânia, partilhando conosco, contou que as crianças, que tinham de 8 a 17 anos, aproximadamente, eram apenas algumas das que iam até a praça. Algumas já eram aliciadas pelo tráfico, outras eram vítimas de homofobia, e ainda tinham as meninas, que deveriam tomar cuidado redobrado pelo simples fato de serem meninas, e nunca se sabe. Ela ainda comentou que havia um campinho no bairro que poderia ser utilizado para a colônia de férias. No entanto, as crianças não podiam ir até lá, já que o local estava dominado pelo tráfico. Foi um ótimo momento para que pudéssemos pensar em diferentes meios de ser resistência atualmente, e como é essencial para toda criança o direito de ser criança e viver adequadamente sua infância.
Na sequência, participamos de um momento de inserção sociocultural no bairro do Mondubim, visitando a unidade local do Centro Urbano de Cultura e Arte – Cuca para os íntimos -, um complexo destinado ao atendimento do jovem, disponibilizando diversas oficinas de esporte, arte e comunicação para que, também, seja reafirmado o direito do jovem se ser jovem. O espaço era muito bonito, e contava com estruturas que iam desde um cinema até uma piscina, da quadra de vôlei de praia até a estação de rádio do Cuca, tudo pensado para integrar o jovem com ele mesmo e com o mundo à sua volta.
Depois da visita ao Cuca, do pique nique na Lagoa do Mondubim com o pessoal do grupo Mais de Mim, da missa celebrada na igreja de Santa Inês e de um jantar espetacular na casa da Netinha, coordenadora do Centro Magis Fortaleza, voltamos para casa, para uma aguardada noite em que nos deitaríamos em nosso berço esplêndido.
Thais, de verde, eu e Ingridy fazendo merchandising do Programa Magis.
O dia seguinte seria destinado a um aguardado momento de descanso no sítio Montevidéu, uma propriedade dos jesuítas na cidade. Chegando lá, pudemos ter, pela manhã, um contato mais próximo com o tema desse ano do Programa Magis: Ser Mais Amazônia. O momento foi conduzido pela minha amiga Ingridy, que é paraense e voluntária do programa em Fortaleza. Ela nos trouxe tanta coisa que eu não fazia a menor ideia. Pudemos ter uma ideia da dimensão do estrago que ocorre diariamente na floresta: o desmatamento desenfreado, as constantes ameaças de morte aos principais ambientalistas atuantes na região, vinculadas a toda uma movimentação política que ocorre por trás dos panos. E, como comentei, muitos de nós não fazem a menor ideia que isso está acontecendo, o que me deixou totalmente sem chão, já que a impressão que muitos de nós temos é que não sofreremos (ao menos imediatamente) as consequências dos danos que causamos na floresta, e, assim, deixamos isso para lá, ou melhor, para quem mora por lá. É muito triste que tenhamos que viver em uma realidade como essa, embora seja nossa missão torná-la mais digna, humana e consciente de si mesma.
Nesse dia, nossa tarde foi ótima: não fizemos nada. Ficamos no bem bom do sítio aproveitando a boa vida e nos preparando para a peregrinação que faríamos no dia seguinte. Essa caminhada aconteceu durante toda a manhã e um pouco da tarde de quinta-feira, envolvendo boa parte das igrejas do centro de Fortaleza. Fomos cantando grandes sucessos do Programa Magis, como a clássica Anunciação, reconhecendo que a vida é bonita e é bonita e que nações esperam por nós. Foi um momento muito bonito, não só para conhecer historicamente a cidade, mas para adentrarmos a experiência de Santo Inácio como peregrino e entender como sua jornada levou ao que hoje entendemos como seu ramo da espiritualidade cristã. A caminhada então se encerrou com um momento na Praça dos Mártires, onde tivemos um ponto de oração focado principalmente na contemplação para alcançar o amor, percebendo Deus em todas as coisas e como Seu amor nos toca e nos move. A contemplação foi seguida de uma partilha com nossos grupos e, na sequência, fomos até o Centro Cultural Dragão do Mar, onde tivemos um momento de convivência muito bom e tiramos várias fotos que, verdade seja dita, ficaram um esplendor.
Nosso grupo peregrinando pela cidade.
Durante a noite, fomos até a Praia de Iracema passar mais um tempo juntos e, no dia seguinte, nos dedicamos a mais momentos de autoconhecimento. Conduzidos pela maravilhosa e tudo de bom Aline, fizemos alguns movimentos similares ao yoga, seguidos de uma dinâmica um tanto quanto barulhenta: devíamos defender nosso espaço pessoal, expulsar más energias e sensações ruins com uma série de gritos de “NÃO!”, que, no final das contas, nos ensinaram sobre o poder de um comportamento calmo frente a um mais agressivo, e que lidar com nossas angústias com calma e cuidado acaba sendo bem melhor que conviver com elas de um jeito caótico e totalmente alvoroçado. No fim, dançamos mais uma vez em comunidade, e devo reconhecer que fiquei muito feliz por dançar com meus amigos, mesmo que tenha sido do jeito que deu, valeu a pena.
A verdade é que, depois da missa Convivium, que marcou formalmente o encerramento da jornada, não tinha um olho seco dentro da capela do Centro Magis. A sequência de abraços e troca de lágrimas e juras de amor eterno e entrega de lembrancinhas durou bastante, mas cada segundo valeu a pena. O vínculo que criamos ao longo dessa semana é muito forte, e todos ficamos muito felizes pela experiência que tivemos. Isso foi gratificante demais, ver que construímos juntos algo que ficará sempre guardado conosco como um ponto de mudança, um marco zero nas nossas vidas.
Ainda tivemos um ou dois dias para ficarmos entre a gente, e que aproveitamos para ir à praia, repetir a histórica noite do karaokê, conhecermos melhor uns aos outros e firmarmos os laços que fizemos ao longo da jornada. As despedidas vieram, mas com elas a esperança de um reencontro, que nos consolou e nos enviou para casa com a missão de colocar em prática em nossas vidinhas cotidianas todo o aprendizado que vivenciamos tão intensamente.
A esquadra da Jornada Inaciana 2020, na ponte do Centro Cultural Dragão do Mar. Agachados estão Lucas e Cibele. Em pé, da esquerda para a direita estamos Ariane, eu mesmo, Jana, Saiki, Geovane, Aline, Levy, Mari, Ingridy, Caio (um outro Caio!), Alef, Carlos, María e Thais.
No final, embarquei no avião em cima do laço. Aline viu que quase fiquei para trás. Quase perdi o voo de volta e juro que não foi de propósito. Senti que os quinze dias que passei por lá passaram como quinze segundos, que desci do avião no dia 13, dei meia volta e entrei no avião no dia 27. Mas retomo a fala do meu colega: o ano efetivamente começou depois da jornada. Apesar do cansaço físico, eu me senti totalmente descansado e tranquilo para tocar meu barquinho assim que eu pisasse novamente em terras paranaenses. Chegar em casa e fazer mil planos para aproveitar totalmente meus privilégios, de uma forma que eu aprenda e cresça para ajudar outras pessoas a aprender e crescer, um passo de cada vez. Ler, reler e ler de novo o relato da jornada que deixei no meu caderno, vendo que tudo isso foi real e que agora é a hora em que a jornada efetivamente começa e o desafio é justamente semear o conhecimento, o perdão, o amor e o descanso que aprendemos a cultivar na belíssima cidade de Fortaleza.
Agradeço do fundo do coração ao pessoal do Centro Magis de Fortaleza por idealizar e realizar essa missão com tanto cuidado e carinho, e que me cuidou e cuidou do resto da galera para que todo mundo pudesse viver para contar a história, mas também à equipe diretiva do Espaço Magis de Curitiba, que me incentivou a participar de tudo isso, e à CVX, que possibilitou que essa aventura pudesse acontecer. Não pretendo transformar esse parágrafo em um texto de agradecimento pelo Oscar, mas não posso deixar de agradecer à minha família e aos meus amigos que também ficaram junto de mim esse tempo todo. Fico feliz por ter vocês comigo, e acredito que esse seja um dos maiores aprendizados da jornada: abraçar quem está do seu lado, viver e não ter a vergonha de ser feliz, e fazer tudo isso junto, porque a gente junto é muito bom.